O CRIME DE DENUNCIAÇÃO NA LEI DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - Por Rômulo de Andrade Moreira
SUMÁRIO: 1.
Considerações preliminares. 2. O crime de denunciação caluniosa. 3. O conflito
aparente de normas penais. 4. Crime e infração político-administrativa. 5. O
elemento subjetivo do injusto. 6. O dolo eventual. 7. Conclusão. 8. Referências
bibliográficas.
RESUMO: A
primeira questão a ser dirimida neste trabalho diz respeito a um aparente
conflito de normas penais entre o dispositivo ora comentado e o art. 339 do
Código Penal que trata do crime de denunciação caluniosa. Com efeito, a
denunciação caluniosa está descrita como
sendo a conduta de dar
causa à instauração de investigação
policial, de processo judicial, de investigação
administrativa, inquérito
civil ou
ação de improbidade
administrativa contra
alguém, imputando-lhe crime que o
sabe inocente. Ao final, concluímos que
sequer o dolo eventual
é aceito para a configuração
do delito; logo,
a simples dúvida
quanto à inocência
do acusado já afasta a tipicidade.
PALAVRAS-CHAVES:
O crime de denunciação caluniosa. O conflito aparente de normas penais.
Crime e infração político-administrativa. O elemento subjetivo do injusto. O
dolo eventual.
RESUMEN:
La primera cuestión que resolver en este trabajo se refiere a un conflicto aparente
de normas penales entre el dispositivo ahora comentado y art. 339 del código
penal brasileño que trata del delito de denunciación difamatoria. Con efecto, la
denunciación difamatoria se describe como la conducta que causa una
investigación policial, procedimientos judiciales, administrativos o una investigación
civil contra una persona inocente. Al final, descubrimos que el dolo eventual
no es aceptado para la configuración de la infracción; por lo tanto, las meras
dudas sobre la inocencia del acusado ya se desvía de la tipicidade penal.
PALABRAS
CLAVES: Denunciación difamatoria crimen. Conflicto Aparente de Normas Penales
. La delincuencia y la infracción político administrativo. El elemento
subjetivo del injusto. El dolo eventual.
Dispõe o art. 19 da Lei nº. 8.429/92
que “constitui crime a representação por
ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o
autor da denúncia o sabe inocente.” O delito é apenado com detenção de seis
a dez meses e multa. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo
(Lei nº. 9.099/95), portanto, sujeita à composição civil dos danos (art. 74) e
à transação penal (art. 76), além, obviamente, da suspensão condicional do
processo (art. 89). O rito a ser observado será o sumariíssimo (art. 394, §
1º., III do Código de Processo Penal).
O parágrafo único deste
artigo prevê que, “além da sanção penal,
o denunciante está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais,
morais ou à imagem que houver provocado.” A propósito, conferir o art. 387,
IV do Código de Processo Penal (c/c art. 63, parágrafo único).
Segundo o art. 20, “a perda da função pública e a suspensão dos
direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença
condenatória.” Antes, porém, “a
autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o
afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem
prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução
processual.” (parágrafo único). Trata-se aqui, à evidência, de medida
excepcional e de natureza eminentemente cautelar e instrumental; deve ser
fundamentada e demonstrar inequivocadamente a necessidade para a conveniência
da instrução criminal.
Ademais, “a aplicação das sanções previstas nesta lei
independe da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público ou da aprovação
ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal ou
Conselho de Contas.” (art. 21).
Por fim, no art. 22,
estabelece-se que “para apurar qualquer
ilícito previsto nesta lei, o Ministério Público, de ofício, a requerimento de
autoridade administrativa ou mediante representação formulada de acordo com o
disposto no art. 14, poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou
procedimento administrativo.”
Pois bem.
A primeira questão a ser
dirimida neste trabalho diz respeito a um aparente conflito de normas penais
entre o dispositivo ora comentado e o art. 339 do Código Penal que trata do
crime de denunciação caluniosa.
Com efeito, a denunciação
caluniosa, também chamada de “
calúnia
qualificada”
, está
descrita
como sendo a
conduta de
dar causa à instauração de
investigação
policial, de
processo judicial, de
investigação
administrativa,
inquérito
civil ou
ação de
improbidade
administrativa contra
alguém,
imputando-lhe crime que o
sabe
inocente.
Sem dúvidas, trata-se de
figuras penais bem semelhantes do ponto de vista dos elementos do tipo; nada
obstante, estamos com aqueles que entendem que ambos os delitos subsistem autônomos
em nosso ordenamento jurídico.
Observa-se que o núcleo do tipo penal previsto
no art. 339 “é provocar a ação
de autoridade, para isso comunicando-lhe a existência
de infração penal
que não
ocorreu”; tem como objetividade
jurídica “regular
a administração da justiça,
que deve ficar
a salvo de falsas imputações
de crime. Protege-se, também a liberdade
e a honra daquele que
poderá se objeto de investigações
ou acusado de crime
que não
praticou.”
Ora, o fato de alguém oferecer uma “representação
por ato de improbidade contra agente público ou terceiro beneficiário”, somente será idôneo para caracterizar
a denunciação caluniosa se o procedimento administrativo for efetivamente instaurado e se se tratar de imputação de
crime. Atente-se que o art. 339 refere-se à comunicação da existência de
infração penal, enquanto o art. 19 trata de ato de improbidade administrativa,
e é sabido que os atos de improbidade
administrativa não são necessariamente ilícitos penais; podem ser infrações de
outra natureza (civil, administrativa ou política).
Maria
Sylvia Zanella di Pietro esclarece que “
a
natureza das medidas previstas no dispositivo constitucional está a indicar que
a improbidade administrativa, embora possa ter conseqüência na esfera criminal,
com a concomitante instauração de processo criminal (se for o caso) e na esfera
administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo
administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e
política, porque pode implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento dos danos causados ao erário.”
[5]
Aliás, o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é expresso no sentido de que “
os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação
previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifo nosso).
Observa-se que o próprio texto constitucional nitidamente faz a distinção.
Observa-se que o
conceito de infração penal (crime e contravenção) é dado pela Lei de Introdução
ao Código Penal que define crime como sendo “a infração penal a que a lei
comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei
comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa
ou cumulativamente.” (art. 1o. do Decreto-Lei n. 3.914/41).
Estas
definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal,
evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico–penal
brasileiro, ou seja, do ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer
saber o que seja crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1º. da
Lei de Introdução ao Código Penal.
O mestre
Hungria já se perguntava e ele próprio respondia:
“Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se
trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não
contemplado no Código Penal (reservado aos crimes)
ou na Lei das Contravenções Penais? O critério prático adotado pelo legislador
brasileiro é o da “distinctio delictorum
ex poena” (segundo o sistema dos direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime,
e a prisão simples a correspondente
à contravenção, enquanto a pena de multa
não é jamais cominada isoladamente
ao crime.”[6]
Por sua vez, Tourinho Filho afirma:
“Não cremos, data
venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso
entendimento, de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema
jurídico brasileiro e que tem sido
preferido pelas mais avançadas legislações; (...) Veja-se, no particular,
Marcelo Jardim Linhares, Contravenções penais, Saraiva, 1980, v. 3, p. 781:
´Assim, quando a infração eleitoral é apenada com multa, estamos em face de uma
contravenção´.”[7]
Manoel Carlos da Costa Leite também trilha na mesma
linha, afirmando:
“No Direito
brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de infração. Pena de
reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de multa ou ambas
cumulativamente: contravenção.”[8]
Eis outro ensinamento doutrinário:
“Como é sabido, o Brasil adotou o sistema
dicotômico de distinção das infrações penais, ou seja, dividem-se elas em
crimes e contravenções penais. No Direito pátrio o método diferenciador das
duas categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo dizer,
não se questiona a essência da infração ou a quantidade da sanção cominada, mas
sim a espécie de punição.”[9]
Luiz Flávio Gomes afirma: “Por força do art. 1o.
da Lei de Introdução ao Código Penal, infração punida tão-somente com multa é
contravenção penal (não delito).”[10]
Ocorre
que determinados tipos elencados na Lei de Improbidade Administrativa não são
infrações penais, mas infrações político-administrativas. Por exemplo: o art.
11, II da Lei de Improbidade não constitui ilícito penal; já o disposto no
mesmo artigo, inciso III, além de constituir o ilícito civil, configura também
o tipo penal previsto no art. 325 do Código Penal (violação de sigilo
funcional). Neste caso, teremos uma ação civil pública e uma ação penal
pública, sem que se possa falar, evidentemente, em bis in idem, pois se
tratam de instâncias independentes, com sanções de diversa natureza.
Destarte,
quando a denunciação tiver por objeto uma infração penal estaremos diante do
delito tipificado no Código Penal; tratando-se “apenas” de um ato de
improbidade (sem caráter penal), aplica-se a lei especial (art. 19).
[11]
Neste
sentido, afirma Cezar Roberto Bitencourt:
“
Assim, nada impede que alguém atribua,
falsamente, a algum agente público a prática de ato de improbidade
administrativa que, no entanto, não seja tipificado como crime. Nesse caso,
esse alguém incorre na previsão do art. 19 da Lei nº. 8.429/92; contudo, quando
a representação, de qualquer forma, imputar, falsamente, a prática de ato de
improbidade administrativa que, ao mesmo tempo, seja definido como crime
incorrerá na previsão do art. 339 do Código Penal.”
[12]
Assim
também pensa Delmanto, para quem este art. 19 “
só terá aplicação quando o ato de improbidade constituir apenas
infração administrativa; se o ato de improbidade constituir crime, aplica-se o
art. 339.”
[13]
Mas não é só.
Induvidosamente, para a configuração
do crime previsto no art. 19 da lei especial, faz-se indispensável
a demonstração de se provar o elemento
subjetivo do tipo, consubstanciado no conhecimento da inocência
do representado, ou seja, mister que o autor
tenha consciência (certeza)
que o ato de improbidade administrativa por ele
imputado ao terceiro não foi por este
cometido, ou que
sequer tenha existido.
Pelo princípio
inafastável da reserva legal urge que
a inocência de quem
foi representado seja do conhecimento prévio do representante. A convicção
da inocência integra o elemento subjetivo
do tipo penal,
sem o qual
este não
se configura (observa-se que o dolo é parte integrante do tipo
penal, o que
vale dizer que sem ele não há crime – neste delito não há a forma
culposa).
Assim, o agente deve saber que o representado é inocente,
seja porque não
foi o autor do ato ímprobo, seja porque este ato sequer existiu. A certeza
moral da inocência
é elemento indispensável
à configuração do delito. Mutatis mutandis, podemos perfeitamente
citar em reforço a esta afirmação os seguintes julgados do Superior
Tribunal de Justiça:
“Para a configuração do delito previsto no
art. 339 do Código Penal, é mister que a imputação seja objetiva e subjetivamente
falsa, exigindo-se do sujeito ativo a certeza quanto à inocência daquele a quem
atribui a prática do ilícito penal. No caso, pela leitura da denúncia e das
peças que a embasaram, sem que haja a necessidade de se incursionar na seara
fático-probatória, não se vislumbra suficientemente demonstrado o dolo do
paciente, consubstanciado no deliberado intento de imputar crime àquele que
sabe ser inequivocamente inocente.” (STJ – 6ª T. – HC 109.658 – rel.
p/acórdão Og Fernandes – j. 17.03.2009 – DJU 04.05.2009).
“Não se pode falar em denunciação caluniosa quando
o acusado tinha motivos
veementes para
crer em prática delituosa, por
parte do denunciante. Trancamento da ação penal que se impõe, visto
descaracterizado o tipo penal que é o dolo direto pela certeza do agente,
da inocência do imputado (art. 339, do
CP).” (HC 3795/SP – 5ª. Turma, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU 26.02.96, p.
4.026).
No mesmo
sentido:
“Para a configuração
da denunciação caluniosa é necessário que o agente saiba, sem qualquer dúvida,
que a acusação
é falsa. O dolo
eventual não
basta. O simples
estado de dúvida
afasta a tipicidade do delito.”
(TJSP – Ver. – Rel. Marino Falcão
– RT 612/288).
“Para a configuração
da denunciação caluniosa torna-se necessária
a certeza moral
da inocência do acusado. E quem procede na dúvida
de ser, ou não, verdadeira a acusação,
não incorre nesse delito.”
(TJSP
– HC – Rel. Felizardo Calil – RJTJSP 65/298).
“Crime de denunciação caluniosa cuja
existência – elementar para a justa causa – depende, lógica e juridicamente, da
extinção formal da investigação criminal ou do processo penal com a expressa
conclusão que o autor da notícia crime sabia ser inocente o apontado suspeito.
Impossibilidade de o Ministério Público apoiar-se na investigação original,
fruto de notícia da paciente, para denunciá-la pelo crime do artigo 399 do
Código Penal, sem que esta mesma investigação haja sido concluída formalmente
com o arquivamento pelo reconhecimento da existência dos fatos informados.
Manifesta ilegalidade que importa em procedência do pedido na ação de habeas corpus para extinguir o
processo criminal em face da paciente por falta de justa causa” (TJRJ– 5ª
C. - HC 2008.059.07867 – rel. Geraldo Prado – j. 18.12.2008).
“No tipo
subjetivo da denunciação caluniosa,
exige-se tenha o agente plena certeza quanto à inocência
da pessoa visada na imputação,
que pode muito
bem resultar na
subjacência de interesses em conflito dos
envolvidos e a explicar o móvel
da iniciativa.” (TJSP – AC – Rel. Gonçalves Nogueira – JTJ-Lex 176/310).
“O crime de denunciação caluniosa exige que o
agente impute falsamente a alguém a prática de um delito (real ou fictício),
tendo plena ciência de sua inocência, devendo, com isso, causar a instauração
de investigação policial ou ação judicial contra a pessoa. Não exige o tipo
penal a instauração de processo administrativo em sentido estrito,
contraditório destinado à apuração de faltas
disciplinares, mas sua mera investigação – correlatamente à investigação
criminal pelo Inquérito Policial. (...) O arquivamento posterior dessas
investigações, antes da fase contraditória administrativa, não é causa
firmadora do tipo penal do art. 339 CP, mas justamente indício da falsidade dos
fatos imputados. Presentes esses elementos, verifica-se a tipicidade em tese do
fato, sendo devido o prosseguimento da
ação penal” (TRF 4ª R. - 7ª T. - HC 2009.04.00.004318-0 rel. Néfi Cordeiro
– j. 03.03.2009 – DJU 11.03.2009).
Aliás, tal posicionamento pretoriano não
é de agora, pois
“a jurisprudência,
de longa data,
vem entendendo ser necessária
a prova do elemento
subjetivo do injusto,
para que haja
processo e, se for o caso,
condenação por
denunciação caluniosa.” (TJSP – HC – Rel. Weiss
de Andrade – RT 490/306).
Veja-se a lição de Damásio de Jesus, válida também para o art.
19 da Lei de Improbidade Administrativa:
“Não há delito
quando o sujeito
apenas tem dúvida
a respeito da existência
do crime ou
de sua autoria. A figura
típica requer que
tenha plena certeza
da inocência da vítima.”[14]
Conclui-se, portanto, que
sequer o dolo
eventual é aceito para
a configuração do delito;
logo, a simples
dúvida quanto
à inocência do acusado já afasta a tipicidade. Repita-se: para
que se configure o delito do art. 19 necessário este elemento subjetivo,
que representa o dolo
(não bastando o eventual),
“até porque
claros os termos
da lei, referindo-se a imputação falsa,
feita de má-fé.”[15]
[14] Direito Penal,
Vol. IV, São Paulo:
Saraiva, 2ª. ed., 1989, p. 229.
[15] PIRES, Ariosvaldo
de Campos, Compêndio de Direito
Penal, Rio
de Janeiro: Forense,
1992, p. 393.